O dia já ia longo para as minhas aspirações desportivas mas o sol ainda aquecia com firmeza a encosta na zona de Seia. Uma pequena multidão subia e descia a estrada do Sabugueiro tentando aproveitar as tréguas momentâneas no tempo cinzento dos últimos dias (ou semanas).
A Serra da Estrela exerce um atractivo com um carisma inegualável em Portugal e maior fosse a vontade e a audácia de quem "gere" tais paragens que certamente proporcional seria o retorno, a todos os níveis, daqueles que procuram não só ver a neve mas também de enfrentar os desafios únicos que tais dominios geográficos nos oferecem.
A minha relação pessoal com o maciço central, curiosamente, aprofundou-se depois de ter vindo viver para bem longe dele e tem vindo a consolidar-se com cada nova incursão a conseguir arrancar-me uma enorme vontade de regressar uma e outra vez.
Aprendi a conhecer a montanha e a respeitá-la. Não ignoro os "avisos" e pago sempre o tributo que lhe é devido quando ela não quer ser conquistada dando meia volta sem protestar em demasia! Levar o nosso esforço para lá do razoável pode ter consequências trágicas e no Inverno já lá levei tratamentos preciosos que me enriqueceram a cultura ciclista.
Ainda assim há voltas que têm que ser feitas!
Brota a ideia em silêncio, germina no nosso cérebro e depois no nosso âmago fervilha a ânsia de iniciar a jornada e no horizonte não se perfilha nenhuma outra opção que não seja a de meter "pernas" à obra e por umas horas fazer da bicicleta um prolongamento do nosso corpo, uma extensão ávida de esforço físico e de superação.
Subir a Serra é sempre um exercício de autocontrole e de gestão desde que se queira ser displicente com a gestão de energias. Com o tempo frio introduzem-se variáveis novas e dificilmente controláveis e isso apimenta um pouco mais as coisas.
A preparação da jornada iniciara-se semanas antes com o peso do corpo já em patamares muito razoáveis, com suplementação multivitamínica e proteica à altura do desafio, com forte ingestão calórica e repouso na semana anterior à partida, com a escolha criteriosa das roupas e nutrição para a jornada e, não de somenos importância, com a elaboração de vários planos de abortagem da etapa! - 3 no total.
No total levei 9 barras energéticas, 3 géis e um invólucro de mel.
Roupa - Calças e calções por cima, protecções para os pés, colete de neoprene de mergulho com 2,5 mm de espessura, camisola térmica, camisola de verão com bolsos (para facilitar o transporte de tanta tralha), casaco de inverno e gorro por baixo do capacete.
Roupa suplementar - Manguitos e pernitos envolvidos no impermeàvel para qualquer emergência térmica e um passa-montanhas
Tudo isto com alguma chuva à mistura aumenta o lastro mas é preferível ter sempre algum recurso a ser apanhado desprevenido.
A partida teve de ser adiada pela forte chuvada matutina. No horizonte algumas abertas incitaram-se a partir com a estrada ainda molhada mas com a temperatura bem razoável a aproximar-se dos 10ºC.
Da Guarda à Covilhã são 45 km que foram feitos à média de 33 km/h com a pulsação acima das 150 bpm de modo a aferir sensações para o resto da volta. Entretanto, na passagem por Belmonte, vejo os topos cobertos de neve e radiantes com o sol reflectido no manto branco e fico com a convicção de lá poder chegar. Com muitos quilómetros ainda pela frente mas sem pressas dou continuidade ao andamento.
Ainda na Covilhã sou recebido por uma forte chuvada que me deixou com o semblante cinzento nebuloso, similar ao horizonte observável. O truque é manter cadência elevada para não arrefecer e não baixar a moral.
Pouco depois, alguns cruzamentos à frente, abandono a nacional e esmorece a chuva. Para compensar aparecem os primeiros caroços que me lembraram ao que ia. Prato pequeno metido à frente, visto que me encontrava em "território" desconhecido, e um olho no GPS e outro na estrada. Estradas maioritariamente municipais, com bom piso, a requererem muita atenção à passagem pelas localidades pela presença de lombas de abrandamento. Trânsito praticamente inexistente, à data e hora da minha incursão, e algumas descidas a serem feitas com precaução.
O percurso ditado pelo GPS faz-me atravessar o meio de uma localidade, com as ruas pavimentadas com calçada granítica e aqui terá de ser feita a correcção de não sair da estrada de alcatrão.
Pouco mais de 20 quilómetros após a Covilhã os primeiros de súbida assumida. Sem castigar as pernas, com boa rotação fazem-se bem e agradecem-se como bom aperitivo para começar a preparar as pernas para "coisas" com mais substância. Mais uma descida rápida e com o pulso controlado eis que surgem 20 quilómetros de subida.
Entra-se com firmeza, desce-se um pouco e dentro da aldeia as coisas ficam fortes e obrigam a puxar pelos galões. Na saída, bem dura, até ao cruzamento com estrada com excelente piso aquece-se ainda mais. Depois mete-se a pedaleira grande e são muitos os quilómetros até ao topo, com paisagem deslumbrante que poderá ser devidamente apreciada, com o final a complicar ligeiramente.
Algum alimento e assim que se conclui a súbida desce-se abruptamente para se iniciarem mais 8 km com pendentes mais exigentes, com passagens nos 8%. (6% de média feitos a 15 km/h com pulsação média de 162 bpm e máximo de 175bpm)
Nova descida e na saída de Louriga encontro um BTTista e pergunto-lhe:
- A súbida para a Serra é durinha?
Ele olha-me desconfiado e resmunga
- Já a primeirta à dt.ª?
- Replico - Não conheço mas penso que sim!
- Com bons andamentos, vindo bem preparado, até dá para fazer...
Algumas mensagens curtas e troca de galhardetes e seguiu-se o conselho final:
- Tem lá duas rampas com 14% que devem doer!
Primeiro vai-se à cautela com bom passo. Assim que se vira à direita logo 11% de inclinação, relaxa-se nos 5% e os primeiros 14% curtinhos feitos de "sprint". Mais uma zona "suave" e a 2ª passagem aos 14% dá que pensar!
O problema foi que não eram duas as rampas com esta inclinação. Eram muitas mais! Numa delas desesperei nos 15% em cadência de 40 rpm e amaldiçoei o "artista" que fez a placa para os 14%. Este número aparece uma e outra vez nas placas e leva-nos ao desespero - Literalmente!
Entre pendentes elevadas algumas zonas a 8% e outras até com pequenas descidas. Apareceu a neve e tive de fazer contramão para prosseguir. Os músculos começaram a acusar o desgaste e a progressão tornou-se calamitosa.
A determinado momento a estrada está cortada por um monte de neve. Ao lado algumas famílias brincam e os bombeiros observam de prevenção. Pergunto se ainda falta muito para o final mas ninguém me responde e fingem nem sequer me ouvir...
Bicicleta às costas e para a frente é que é caminho! Os 12% seguintes foram feitos na zona de degelo o que me encharcou os pés. Paragem aqui e ali para galgar para a abertura seguinte e a progressão cada vez mais difícil. Finalmente, a um quilómetro do final, sou confrontado com a necessidade de inverter a marcha...
Com os pés gelados a descida é tão ou mais complicada que a súbida. No ponto onde se encontravam os bombeiros apenas uma voz seca:
-Pelo menos a descer é mais fácil...
Nova paragem para galgar o obstáculo de neve e o frio a obrigar-me a acelerar serra abaixo. Concentrei-me e já com o piso seco meti carga!
Sempre a pedalar o 50x11 deu-me para fazer 71,30 km/h. No cruzamento viro à direita para Seia e faço uma série maoritariamente em descida com a média de 52 km/h. Quando dei por mim estava novamente quentinho mas na zona de São Romão numa pequena súbida um ataque de cãibras, elas que na enorme súbida começaram a ameaçar.
Muita palavra que não merece repetição proferi...
Atravesso Seia e aponto ao Sabugueiro. A saída é dura quanto baste com uma passagem acima dos 10%. Cerca de quatro quilómetros volvidos um furo na bicicleta e um telefonema:
- Mulher vem-me buscar...
- Vem andando que nós estamos aqui em cima e já nos encontramos.
- Daqui não saio!
Números:
3135 m de acumulado real, 6265 kcal, quase 150 km e 6h00 de viagem
Já no regresso, ao passar na zona de Gouveia a cereja no topo do bolo.
-Reconheço que talvez seja um pouco teimoso!
A minha mulher observa-me em silêncio.
- Bem sei que demorei algum tempo em o reconhecer, mas vale mais tarde que nunca, certo?
Ela limitou-se a sorrir e depois repetiu algumas vezes:
- "És um "bocadinho" teimoso! És sim senhor!"
Olhei a Serra e despedi-me:
- Até à Páscoa!