
Não de somenos importância raras vezes nos mortificamos com o propósito único de nos conhecermos melhor.
"Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive. " - Fernando Pessoa
[Dois dias antes]
Após uma viagem com muita chuva, com todos os prognósticos de mau tempo a serem confirmados, cheguei finalmente à Guarda, na companhia da minha família para umas pequenas férias
[Um dia antes]
Continuou o tempo chuvoso com alguns periodos secos a adivinharem algumas possibilidades de melhorias nas condições climáticas. Ainda assim não arrisquei uma saída para desentorpecer os músculos e para me ambientar à altitude. Havia o risco de molhar o equipamento, o único que levei.
Sexta-feira
06h40 - Início da operação
Acordei para um dia já sem chuva ainda que a estrada estivesse molhada.
07h30 - Começaram as hostilidades.
Arrisco a não levar o impermeável. A temperatura relativamente baixa leva-me a optar por um colete "térmico" de mergulho e pelas calças de Inverno. Luvas cortadas e parca cobertura nos braços para poder ventilar o calor.
500 metros depois de arrancar a primeira contagem. Súbida curta de aproximadamente 3 Km, que já fez parte do final de uma etapa da volta a Portugal, feita em ritmo de aquecimento.
Depois de atingido o topo descida para o Porto da Carne em direcção a Celorico da Beira.
O dia vai clareando e a velocidade subindo. Peso nos crenques e cadência elevada ânimam-me a seguir em frente.
Na Lageosa do Mondego um caroço com 8% de inclinação e logo depois, já em Celorico da Beira, uma passagem com a mesma pendente que foram levados com cabeça (entenda-se pedaleira pequena).
A partir daqui o relevo é algo irregular ainda que aparentemente rolante. Sem forçar deu para chegar ao cruzamento de Gouveia com média a superior aos 30 km/h. A partir daqui entra-se em súbida e o cenário altera-se substancialmente.
A primeira fase, até ao coração de Gouveia, tem uma passagem nos 9%. O resto é acessível.
Tinha determinado fazer esta súbida "nas calmas" e assim procedi. Depois de passar o "pavé" da cidade entra-se na segunda parte da súbida com total de cerca de 25 km. Pendente irregular com passagens desde os 3% até aos 7%.
Após meia hora de súbida apanho uma chuva miudinha e algo estranha visto que apenas molha quem a apanha! Temperatura amena e boa cadência de pedalada permitem-me boa progressão sempre com batidas na ordem das 160 bpm.
Surge depois o nevoeiro. Parecia que a serra brincava comigo. Ora estava completamente envolto em núvens como de um momento para o outro aparecia uma clareira solarenga.
Na fase final até deu para meter a "talega" e estugar o passo. Tempo total de súbida de 1h25m.
Quando me preparava para ingerir alimento de modo a começar a preparar o desafio seguinte surge um denso e gélido nevoeiro. Não se via um palmo à frente do nariz e a temperatura baixou abruptamente vários ºC..
Não só não consigo comer como à passagem pela zona da pousada dou por mim completamente gelado e aa tremer por todos os poros. Os dedos das mãos a não quererem colaborar nas travagens, os músculos da face paralizados e uma sensaçãao de mal estar geral.
Repetidamente abanei a cabeça e decidi nunca mais voltar à serra na Páscoa, visto que no ano transacto uma situação semelhante me levou aos limites.
Faço uma paragem para aquecer os dedos continuando sempre a mexer-me de modo a activar a circulação sanguínea.
Continuo mais alguns minutos e interrompo a marcha novamente quando surgem alguns raios de sol numa aberta. Aqueço as mãos e levanto os braços para tentar expor a área corporal máxima ao calor reconfortante que ia chegando. (Lembrei-me de um lagarto esticado ao sol)
Até Manteigas ainda e sempre a tremer numa velocidade média de descida de 28 km/h (ritmo sofrível).
Os transeuntes olhavam-me enquanto ingeria uma barra energética e ponderava as alternativas. Virar para a Guarda em direcção a um sol esplendoroso ou continuar para a Torre onde o nevoeiro surgiria sensivelmente a meio da súbida...
Definitivamente o frio não é bom conselheiro. A decisão recaiu em ir aquecer para a súbida e aferir posteriormente o procedimento a adoptar.
Entro na súbida, na zona dos viveiros das trutas (pelo menos há uns bons anos assim o era) "preso" dos músculos. Arrefecido, a progressão torna-se lenta e sofrível. Não consigo fazer subir as pulsações mas em alternativa consigo "trancar" em cadência próxima das 75 rpm.
Sigo neste registo até quase ao Covão da Ametade quando decido"mexer". Faço uma pequena paragem para ingestão de um gel de absorção rápida e alguns liquidos,
De volta à carga os efeitos são notórios ao fim de poucos minutos. Alegra-se-me o semblante e recupero a confiança. Aumento o pulso e tudo o resto por acréscimo.
Na passagem pelo centro de limpeza de neve a temperatura baixa muito mas desta feita entro bem na fase final da súbida com pulso acima das 175 bpm e cadência sempre certa e elevada.
Até ao túnel a única distração surgiu com a presença de neve na berma direita. Depois o relevo empina e em crenques ataco a fase seguinte.
Nevoeiro e chuva à mistura. Olhos na estrada e pulso ligeiramente abaixo do vermelho.
Os minutos vão passando e entre pensamentos sou desperto pelos braços encharcados e pelo visor do garmin tapado por neve!
Vem-me à memória o fantasma da descida...
Enquanto o pulso estivesse alto não haveria problemas.
À medida que me aproximava do topo as condições pioravam. Assim com 1h17m de súbida, pouco depois da "Santa" esculpida na pedra granítica decido inverter o sentido de marcha e aproveitar a referência para as travagens que resultavam de poder seguir dois automóveis que entretanto se cruzaram comigo.

Novamente no Centro de Limpeza de Neve deparo com um automobilista a inverter a marcha e a não arriscar na súbida à Torre.
Mentalmente consegui gerir a distância e o sofrimento. Com a descida o tempo vai melhorando e aos poucos e a estrada vai secando.
Novamente em Manteigas passo directo e sempre a pedalar para não arrefecer em demasia.
Na zona do Sameiro um sol maravilhoso brinda-me finalmente!
Relaxo enquanto aqueço e como mais uma barra. A parte da alimentação estava muito fraca e a última súbida estava mesmo a chegar.
Após Valhelhas vira-se à esquerda e regressa a pendente de súbida.
Esta é a mais acessível das contagens e somente a distância total e os 150 km percorridos até esse momento é que poderiam dificultar.
Senti-me sempre confortável e com passo alegre. Na passagem pelo cruzamento de Fernão Joanes fico sem àgua e tenho de parar para aliviar na roupa que trazia vestida.
A segunda parte da súbida foi toda na "talega" e sempre com vigor na pedalada.
Já com a Guarda no meu campo visual decido ir quase até à Sé e subir os últimos metros em paralelos com a roda traseira aos saltos.
Finalmente estava concluída a parte dura. Restava apenas descer e relaxar...
Distância - 180 Km
Calorias - 7700 Kcal
Acumulado - 4700 m
Tempo - 7h30m

... mas lembrem-se:
"Um minuto de felicidade vale mais que mil anos de glória" - Voltaire